quarta-feira, 7 de novembro de 2007

QUANDO A DEMAGOGIA TIRA CARTA DE CONDUÇÃO

Diário de Notícias
6 de Novembro 2007



O trágico atropelamento do Terreiro do Paço teve efeitos indirectos na minha caixa de correio. Como eu sou um perigoso selvagem que em tempos defendi que os limites impostos pelos novos radares de Lisboa eram um absurdo, leitores dedicados que guardaram esses recortes à espera de uma oportunidade sangrenta estão agora a fazer a festa. Diante de dois corpos despedaçados na Av. Infante D. Henrique, só um bárbaro se atreve a questionar limites de velocidade cerrados nas grandes cidades, certo? Talvez seja melhor dizer que sim com a cabeça. Seja um acelera maluco ou uma tartaruga obcecada pelas mortes nas estrada, um fundamentalista é sempre um fundamentalista.

O leitor Carlos Martins, numa mensagem tão demagógica que faz os discursos de Hugo Chávez parecerem um exemplo de moderação, lança-me mesmo um desafio: "Aguardamos agora nova peça do Sr. Tavares, explicando aos dez órfãos [uma das vítimas do atropelamento tinha dez filhos] que não se deve restringir as velocidades nas cidades." Da minha parte, o Sr. Tavares manda dizer que a utilização de órfãos em campanhas publicitárias é desaconselhada pelas leis da república, e que há limites para a desonestidade intelectual. Perdoem-me: o que é que um veículo descontrolado e em excesso de velocidade, que provavelmente passou um sinal vermelho e colheu três pessoas numa passadeira, tem a ver com os limites de circulação no prolongamento da Av. dos EUA? A mim, parece-me que nada. Mas as luminárias do travão acham que tem tudo.

Numa resposta ao seu mail, eu tentei explicar ao leitor Carlos Martins que estabelecer uma ligação entre uma coisa e outra seria o mesmo que atribuir a culpa da guerra do Iraque aos chineses, por terem sido eles a inventar a pólvora. Ou acabar com a caça porque dois inocentes foram mortos a tiro de zagalote. Não bate certo. Pior: é um reflexo daquele tique lusitano que consiste em despejar leis por cima de todos os problemas, e achar que tudo se resolve controlando, controlando, controlando - mas através do Diário da República. Esta gente olha para a tragédia do Terreiro do Paço e não a vê como um acontecimento pontual, inesperado e - lá está - incontrolável. Não: aquilo é sintoma de alguma coisa, num daqueles raciocínios à Paulo Coelho onde um espirro pode encerrar uma verdade escondida sobre o universo. Meus caros leitores encarniçados: as barbaridades acontecem, aqui como em qualquer lado, mas num país civilizado não é a partir de um acto selvagem que se mudam as leis - e a própria falta de civismo não se combate a golpes de chicote. Até por respeito aos dez órfãos, convém nesta questão manter um mínimo de pudor.
João Miguel Tavares

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Também sei o que é "fanatismo rodoviário". Funciona como todos os outros fanatismos: exagera um problema social, convence-se de uma solução milagrosa e depois sente-se no direito de a impor aos outros.
Os acidentes dos últimos dias e a inevitável projecção mediática servem às mil maravilhas os intentos desta gente que os usa para chantagear também os detentores de cargos públicos.
O governo e as autarquias, com medo de serem acusados de negligência, preparam-se para acolher as propostas mais idiotas e encher os bolsos dos fornecedores de radares e não só.
Quanto ao estudo das causas dos acidentes fica para as calendas.

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