segunda-feira, 6 de agosto de 2007

CENAS E SINAIS DO BURLESCO URBANO

Diário de Notícias
5 de Agosto de 2007


CENAS E SINAIS DO BURLESCO URBANO

João Lopes


A cidade de Lisboa está invadida por cenas de um novo género dramático: o burlesco automobilístico. Uma nova legislação faz com que os automóveis percorram agora algumas largas avenidas (incluindo as que apresentam estrutura de auto-estrada) sem passar da velocidade de 50 km/h, gerando muitos e caricatos cortejos de casamentos que não existem.
Compreende-se a lógica financeira da medida: com as inevitáveis multas, encontrou-se uma excelente fonte de rendimento para o Estado, para mais legitimada por essa histeria securitária que alimenta alguns discursos social e simbolicamente muito poderosos, desde os telejornais à classe política. Aliás, os políticos poderiam levar às últimas consequências o seu pendor alarmista, defendendo, por exemplo, a generalização de automóveis que saíssem da fábrica sem poder ultrapassar os 120 km/h, excluindo automaticamente a possibilidade de excessos de velocidade nas auto-estradas. Seria interessante avaliar a capacidade desses mesmos políticos para desafiarem o poder normativo dos fabricantes de automóveis e das empresas de combustíveis.
Curiosamente, a regra dos 50 km/h traduziu-se na proliferação de algumas novas imagens citadinas. A mais emblemática é um sinal circular de proibição como número 50 e, em baixo, a palavra "radar". Depois, há diversos painéis que avisam que se está a passar por uma zona em que as velocidades são controladas por radar. Assim, deixou de haver a capacidade de formular uma simples prática de interdição: não se trata de lembrar que é proibido circular a mais de 50 km/h, mas sim de avisar o condutor que está sujeito a um controlo eventualmente penalizador.
Estamos perante um cruzamento patético entre alógica totalitária do Big Brother e a vulgaridade militante do “nacional-porreirismo". Não se trata de proibir em nome de uma determinada ordem legal (discutível ou não), mas de tratar o cidadão em nome de um estúpido infantilismo: "Se não queres ser multado, não aceleres..."
Há, por isso, um silêncio incómodo em quase todos os protagonistas da nossa classe política. Na verdade, falta saber como encaram esta filosofia de policiamento iconográfico do tecido urbano e os seus efeitos na (de)formação da nossa consciência cívica. Por mim, gostaria de os ouvir responder a uma pergunta muito específica: quando a lei se quer impor como mero jogo de interdição e castigo, qual o sentido de responsabilidade e o grau de responsabilização que podemos esperar do cidadão? Afinal de contas, as imagens da cidade são também um espelho inevitável das relações que, supostamente, sustentam a nossa identidade colectiva.

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